O panteão de chuteiras - Crónica de João Miguel Tavares na edição de catorze de janeiro de 2014 do Jornal
Público
“Se me perguntarem quem é que prefiro ver no Panteão
Nacional, se Óscar Carmona se Eusébio, eu voto obviamente em Eusébio. O Panteão
Nacional, embora parco em sepulturas (são apenas dez), mesmo assim consegue o
prodígio de ter gente que não merecia lá estar, fruto da época turbulenta em
que foi criado (1916) e de meio século de ditadura.
Mas inverter a discussão sobre se Eusébio deve ou não ir
para o Panteão argumentando, em delírio hiperbólico, que ele é muito maior do
que a Igreja de Santa Engrácia e merece melhor companhia é, digamos assim, uma
entrada com os pitons à frente, que não me parece que seja muito útil ao
debate.
Talvez seja ingenuidade minha, mas eu simpatizo com a ideia
republicana de existir um local digno e prestigiado onde homenagear os heróis
da pátria, e aborrece-me quem disso desmerece. Qualquer país decente deve
prestar tributo àqueles que “se vão da lei da morte libertando”, para citar um
senhor que lá não está e merecia estar – é uma questão de identidade nacional e
de respeito pela memória. E é também por isso que me faz alguma impressão
imaginar o Panteão, daqui a 70 ou 80 anos, cheio de homens do futebol. Para o
ano é Eusébio. E num futuro que se quer distante há-de ser Cristiano Ronaldo e
José Mourinho, que hoje em dia têm uma projecção internacional como Eusébio
nunca teve.
A existência de um critério compreensível é muito
importante, e a Lei n.º 28/2000, que regula as honras do Panteão Nacional,
define-o com bastante clareza: ele destina-se “a homenagear e a perpetuar a
memória dos cidadãos portugueses que se distinguiram por serviços prestados ao
País, no exercício de altos cargos públicos, altos serviços militares, na
expansão da cultura portuguesa, na criação literária, científica e artística ou
na defesa dos valores da civilização, em prol da dignificação da pessoa humana
e da causa da liberdade”.
A não ser numa muito vaga definição de “expansão da cultura
portuguesa”, tenho muitas dúvidas que Eusébio caiba com facilidade naqueles
critérios. E ainda bem que não cabe. Não me entendam mal: eu adoro futebol, sou
sócio do Benfica e tenho consciência da importância de Eusébio na história do
desporto português. Mas recuso terminantemente equivaler tudo, numa espécie de
terraplanagem estética e ética, que coloca um futebolista, por mais brilhante
que ele seja, no mesmo patamar simbólico, enquanto herói de uma pátria, em que
estão os artistas, os cientistas ou os defensores da liberdade.
Eusébio não é Aristides de Sousa Mendes, que não está lá.
Jogar bem à bola não tem o mesmo valor de salvar milhares de vidas. Eusébio não
é Salgueiro Maia, que não está lá. Jogar bem à bola não tem o mesmo valor de
derrubar uma ditadura e recusar todas as prebendas. Eusébio não é Amália, que
está lá. Jogar bem à bola não tem o mesmo valor que elevar a única criação
artística genuinamente portuguesa – o fado – a patamares até hoje
inultrapassados.
Panteão, em grego, significa o conjunto de todos os deuses
(pan+theos). E se formos guiados pela etimologia, talvez faça sentido, no
século XXI, enchê-lo de figuras ligadas ao futebol, essa verdadeira religião
dos tempos modernos. Mas não consigo aceitar essa opção sem sentir que algo de
fundamental se está a perder. Não é nada contra Eusébio. É tudo contra o
relativismo da contemporaneidade, ainda que sob o alto patrocínio da Assembleia
da República.”
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